domingo, agosto 05, 2007

Que o Deus Venha


Interpretação de Cazuza para trecho do livro Água Viva de Clarice Lispector.
Gravação raríssima de 1987 no Morro da Urca, RJ.
Com participação de Ângela Ro Ro.

quarta-feira, julho 18, 2007

Pressa

Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...

E caem! - Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, coxo quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar... Heis de cair. (Cap. LXXI - O senão do livro - Memórias Póstumas de Brás Cubas)

sábado, julho 14, 2007

A garantia do exercício da possibilidade

FOME DE SABER SEDE DE VIVER!

Oswald de Andrade, em seu Manifesto Antropofágico, de 1928, discorre em um texto mordaz e irônico o procedimento cultural que implica no ato de conscientizar sobre a brasilidade. Nesta manifestação, o autor faz do ato canibalístico seu instrumento para a devoração do estrangeiro. Acredito que o modernista não gostaria de assistir à antropofagia da sociedade de consumo, com a realidade que produz. Caro Oswald, preciso dizer-lhe que no lugar de devorar, somos devorados. Todos os dias. Continuamente, velozmente, impiedosamente.

É impossível continuar discorrendo sobre a realidade atual sem informá-lo que a grande boca que nos devora começa nas palavras que imperam em nossa língua. Para o senhor, que disse certa vez que a língua é a soma milenar de todos os nossos erros, não seria muito agradável ver as distorções a que estamos submetidos. Sinto dizer, mas o estrangeiro hoje é sinônimo de "status". E quem não tem status é excretado. Porque, para ter status, precisa consumir.

Bem, então, consumidos pela sociedade de consumo, consumimos tudo que nos fazem acreditar em uma almejada qualidade de vida. Idéia aliás, que também é produto do consumo que nos consome. Mas, sem tempo para a qualidade, nos nossos trabalhos insanos, optamos por um "lanchinho" rápido, ao invés de um belo prato. E enquanto devoramos um "hambúrguer", somos devorados pelo "fast food", do qual "fastmente" somos expelidos. E vamos aos "shoppings centers", comprar um celular ou um computer, porque ninguém vive sem "e-mail" hoje em dia. Papel, caneta, carteiro? Esquece. O negócio agora é a era da informática, que trouxe de vez o inglês para nossa pátria. Do "Tupi or not Tupi", não nos restou nem a língua mátria.

Neste ponto do texto, tive que parar de escrever porque sai do trabalho. O negócio é que voltando para casa, uma amiga ligou no celular para dar uma ótima notícia, fumei um Malrboro, parei em um Select, comi um bolinho de carne, um quiche e tomei uma coca light. E, devo confessar, amei. Portanto, não vou cuspir no prato que como todo dia. Pois não vivo sem celular, trabalho com computador o tempo todo, amo as facilidades da Internet e mando e recebo e-mails todo dia.

Isso não invalida, porém, o excesso em que vivemos, o estresse que passamos pelo bombardeio de informações e pelo massacre dos meios na pós-modernidade. É desgastante, nos engolem diariamente. Mas, se por um lado vivemos todo tipo de caos nesse mundo globalizado, que nos aproxima, mas também nos encurrala, vivemos também a era da diversidade, incrementada inclusive pela expansão de nossas fronteiras com as novas tecnologias. Com tantas realidades, percebo que, talvez, o mais revolucionário dos atos no mundo contemporâneo, é o respeito à diferença de pensamento, etnia, credo, gênero, classe social e, acima de tudo, identidade.

Temos como responsabilidade sim usar as ferramentas, nossos conhecimentos e os espaços que temos o privilégio de ocupar para manter viva a luta por um mundo mais homogêneo com a expansão do acesso à diversidade de informações, cultura e consumo, valorizando o instrumento que temos em mãos. Acho bobagem levantar bandeiras que só geram exclusão de diferentes grupos e opiniões. Podemos unir todos esses aspectos do mundo pós-moderno a favor da homogeneidade no direito ao acesso, respeitando a heterogeneidade de cultura, valorizando a identidade de cada um e aceitando a diversidade como ponto primordial da existência ou, melhor dizendo, da coexistência.

Devoremos então o farto prato que nos é concedido pela realidade atual e por nossas relações diárias da melhor forma possível, valorizando o consumo como um banquete a ser dividido, reduzindo ao máximo a idéia de que o que o povo quer é pão e circo. Resgatando, mais uma vez do Manifesto de Oswald, o direito como a garantia do exercício da possibilidade.

terça-feira, dezembro 12, 2006

Mãos Dadas - Paixão Segundo GH


“Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria. Muitas vezes antes de adormecer nessa pequena luta por não perder a consciência e entrar no mundo maior – muitas vezes, antes de ter a coragem de ir para a grandeza do sono, finjo que alguém está me dando a mão e então vou, vou para a enorme ausência de forma que é o sono. E quando mesmo assim não tenho coragem, então eu sonho” (...)


Não serei o poeta de um mundo caduco.


Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.


Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,


não direi os suspiros ao anoitecer,

a paisagem vista da janela,

não distribuirei entorpecentes ou carta de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria,

o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.


“Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando minha mão”
Oh pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la, irei sozinha. Por enquanto, preciso segurar essa tua mão – mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora decepada, esta mão não me assusta. A invenção dela vem de tal idéia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais. Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira. E como imaginar um rosto se não sei de que expressão de rosto preciso? Logo que puder dispensar tua mão quente, irei sozinha e com horror. O horror será a minha responsabilidade até que se complete a metamorfose e que o horror se transforme em claridade” Pág. 18.

quarta-feira, novembro 29, 2006

Um coração Selvagem


Sou inquieto, áspero
E desesperançado
Embora amor dentro de mim eu tenha
Só que eu não sei usar amor
Às vezes arranha
Feito farpa

Se tanto amor dentro de mim
Eu tenho, mas no entanto
Continuo inquieto
É que eu preciso que o Deus venha
Antes que seja tarde demais

Corro perigo
Como toda pessoa que vive
E a única coisa que me espera
É o inesperado

Mas eu sei
Que vou ter paz antes da morte
Que vou experimentar um dia
O delicado da vida

Eu vou
Comer um dia
O delicado da vida

terça-feira, novembro 28, 2006

Âmbar e hortelâ


(explosão) o céu despencara sobre seus ombros... Olhos avermelhados pelas lágrimas não enxergavam mais o caminho a seguir. (explosão) Todo o passado, por mais intenso e mágico, transformara-se em uma dolorosa pedra sobre seu corpo a esmagar-lhe as entranhas e tirar-lhe o ar... Não respirava. Sufocada pela dor, prolongada pelo silêncio do mundo a sua volta. Fora terrivelmente insano empurrar aquela dor rígida e concreta para longe... Uma força hercúlea que não queria nunca mais fazer. Mas fortalecera sua alma como quem volta de uma jornada nos mares. (explosão) Percebera em si uma força que jamais imaginara possuir. Finalmente aportara. Os pés caminhavam sobre o solo úmido das novas experiências - ainda não definidas, mas transbordantes em cheiro bom de terra fértil. Novos horizontes já se desenhavam no caminho que traçava. Um novo ar enchia-lhe os pulmões. Era vida que se apresentava. Novo começo. Novos começos sempre têm cheiro de âmbar. Novos começos sempre são cheios de sabor fresco de hortelã...

segunda-feira, novembro 27, 2006

LÁGRIMA

Lágrima – Roque Ferreira

Lágrima por lágrima hei de te cobrar
Todos os meus sonhos que tu carregaste, há de me pagar
A flor dos meus anos, meus olhos insanos de te esperar
Os meus sacrifícios, meus medos, meus vícios, hei de te cobrar

Cada ruga que eu trouxer no rosto, cada verso triste que a dor me ensinar
Cada vez que no meu coração, morrer uma ilusão, há de me pagar
Toda festa que adiei, tesouros que entreguei, a imensidão do mar
As noites que encarei sem Deus, na cruz do teu adeus, hei de te cobrar

A flor dos meus anos, meus olhos insanos, de te esperar
Os meus sacrifícios, meus medos, meus vícios, hei de te cobrar
Cada ruga que eu trouxer no rosto, cada verso que a dor me ensinar
Cada vez que no meu coração morrer uma ilusão, há de me pagar
Toda festa que adiei, tesouros que entreguei, a imensidão do mar
As noites que encarei sem Deus, na cruz do teu adeus, hei de te cobrar...

Lágrima por lágrima.

sábado, novembro 25, 2006

A maçã no escuro - Clarice Lispector

A ilimitada liberdade o deixara vazio, cada gesto seu repercutia como palmas na distância: quando ele se coçou, esse gesto rolou diretamente para Deus. A coisa mais desapaixonadamente individual acontecia quando uma pessoa tinha a liberdade. No começo você é um homem estúpido tendo a mais a grande solidão. Depois, um homem que levou uma bofetada na cara e no entanto sorri beato porque ao mesmo tempo a bofetada lhe deu de presente uma cara que ele não suspeitava. Depois, aos poucos, você começa, sonso, a fazer casa e a tomar as primeiras intimidades impudicas com a liberdade: você só não voa porque não quer, e quando se senta numa pedra é porque em vez de voar sentou-se. E depois?

Que era inteiramente vazio, para falar a verdade. Aquele homem rejeitara a linguagem dos outros e não tinha sequer começo de linguagem própria. E no entanto, oco, mudo, rejubilava-se. A coisa estava ótima.
Então, para começo de conversa, a pessoa se sentava na pedra no domingo.
E de tal modo, com perverso gosto, o homem se sentia agora longe da linguagem dos outros que, por um atrevimento que lhe veio da segurança, tentou usá-la de novo. E estranhou-a, como um homem que escovando sóbrio os dentes não reconhece o bêbado da noite anterior. Assim, ao remexer agora com fascínio ainda cauteloso na linguagem morta, ele tentou por pura experiência dar o título antigamente tão familiar de “crime” a essa coisa tão sem nome que lhe sucedera”.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Quartas-feiras

"Que bobagem falar que é nas grandes ocasiões que se conhece os amigos! Nas grandes ocasiões é que não faltam amigos. Principalmente neste Brasil de coração mole e escorrendo. E a compaixão, a piedade, a pena se confundem com amizade. Por isso tenho horror das grandes ocasiões. Prefiro as quartas-feiras."
Mário de Andrade

terça-feira, outubro 31, 2006

AI SE SÊSSE

Photo: O Jardim das Delícias Terrenas - Hieronymus Bosch


Cordel do Fogo Encantado:
"A gente veio la do Sertão de Pernambuco, cidade chamada Arco Verde. O poeta Zé da Luz, do início do século, escreveu uma poesia. Porque disseram pra ele que pra falar de amor era preciso um português correto, e tal... então ele escreveu uma poesia assim:"


Se um dia nois se gostasse
Se um dia nois se queresse
Se nois dois se empareasse
Se juntim nois dois vivesse
Se juntim nois dois morasse
Se juntim nois dois drumisse
Se juntim nois dois morresse
Se pro céu nois assubisse
Mas porém acontecesse
de São Pedro não abrisse
a porta do céu e fosse
te dizer qualquer tolice
E se eu me arriminasse
E tu cum eu insistisse
pra que eu me arresolvesse
E a minha faca puxasse
E o bucho do céu furasse
Da vês que nois dois ficasse
Da vês que nois dois caisse
E o céu furado arriasse
e as virgi toda fugisse

Severino de Andrade Silva (Zé da Luz), nasceu em Itabaiana, PB, em 29/03/1904 e faleceu no Rio de Janeiro-RJ, em 12/02/1965

domingo, outubro 29, 2006

O toque do olhar


Via um pedaço de um Deus nos olhos das pessoas. Daqueles próximos a si em alma, via uma luz sair dos olhos diante dos seus. Tivera momentos em que a luz fora tão forte que a cegara. Até que ponto a claridade ilumina ou cega? Não sabia... Esse era seu medo e seu segredo. Quantas vezes desviara o olhar com medo de enxergar Deus novamente... Em um dos períodos de cegueira, a escuridão perdurou por quatro meses, acompanhada de lágrimas que não se sabia de onde vinham e por qual motivo... Não pôde sair de casa nesse período... Chorava e não via nada.

Passado o tumulto, o Deus do olhar das pessoas também sumiu. Não entendeu, mas foi um alívio. Seu fardo finalmente saíra de sua vida. Podia olhar nos olhos das pessoas sem cegar-se. Tudo perdeu um pouco do brilho – é fato -, pois sabia que esse olhar era também sua riqueza, mas o caminho tornou-se mais leve. Às vezes, procurava um Deus no olhar de alguém aqui ou acolá... Nada... Até que esqueceu. Esqueceu que um dia viu um Deus em olhares alheios. Rumou na escuridão da luz terrena com um sorriso de quem não sabe e com um olhar de quem tudo vê e pouco enxerga. Cegueira velada.

O conforto da conformidade de seu olhar foi então subitamente ameaçado quando ele apareceu. “Era quimera e parecia ser o amor... Era quimera. Graça flutuante, figurava estar sentada. A cabeça era magra, coberta de cachos, junquilhos, de onde o sol jorrava. As asas mantidas fechadas tocavam o chão, longas, emplumadas. O corpo intangível. Seus olhos, castanho verde cinza dourados e escarlates. Me olhavam como se fosse desde sempre. A límpida palavra. Era belo e assim se apresentava.” ("Pequeno Oratório do Poeta Para o Anjo" da escritora Neide Arcanjo)

Pela primeira vez, sem que ela soubesse, alguém vira um Deus nos seus olhos. Conversaram horas a fio sem que ele revelasse o que via diante de si. Ela não imaginava que seu olhar velado desvendava toda a luz de uma divindade. Alheia a isso, não pôde compreender quando ele revelou o fato. Subitamente, um mundo de confusão invadiu sua alma. Presente e passado, retomado em sua memória, misturavam-se em medo e ânsia por sentir novamente a luz de um Deus se manifestando diante de seus olhos. E agora os olhos eram os seus.

Então ele cegou-se. Um dia. De repente. Ela sabia que isso iria acontecer. Afastaram-se pois não podia mais vê-la, por mais que quisesse senti-lo. Insistiu, sem retorno. Seguia na rua desviando olhares com medo que vissem a luz de um Deus em seu. Ficaram assim por meses, ela desviando o olhar e ele tentando ver. Passaram pela vida. Ele recobrou a visão e ela voltou a olhar. Reencontraram-se. Ao acaso. Poucas palavras do que existia antes havia restado. E evitavam olhar-se.

Mas teve um único momento em que o olhar deles se encontrou. Encontro de verdade. Diante dele, os olhos dela começaram a marejar de lágrimas. “Era a beleza e parecia a beleza. Era a beleza. Filho pródigo abandonou a casa. De seus vestígios de musa. De seus lampejos de anjo. Brotaram todas as lágrimas. A dor, incrustada na curva da porta esperou por muito tempo a volta. Depois. No rubi deste coração. Escreveu seu nome.” ("Pequeno Oratório do Poeta Para o Anjo" da escritora Neide Arcanjo). Mais humana, voltara a enxergar.

Grande Sertão: Veredas aos 50 anos

22 de fevereiro de 2006
Ensaio: Roberto Pompeu de Toledo
Grande Sertão: Veredasaos 50 anos
Para lembrar o livro de Guimarães Rosa, lançado em 1956, com a palavra Riobaldo, o narrador da história


Sobre Deus: "Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo."

Sobre o diabo: "Olhe, o que devia de haver era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção – proclamar por uma vez, artes assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim davam tranqüilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?"

Sobre Deus e o diabo: "(...) o diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro. Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor. Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza."

Sobre o sentido da vida (ou falta de): "Em desde aquele tempo, eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria."

Idem: "(...) existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar, e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e a cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa."

Sobre ensinar/aprender: "Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende..." Idem: 'Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas."

Sobre entender/não entender as coisas: "Ah, o que eu não entendo, isso é que é capaz de me matar."

Idem: "Conto minha vida, que não entendi."

Sobre o conceito de "vida", como um todo: "'Vida' é noção que a gente completa seguida assim, mas só por lei duma idéia falsa. Cada dia é um dia."

Sobre acontecimentos: "Agora eu sei como tudo é: as coisas que acontecem, é porque já estavam ficadas prontas (...)"

Sobre a necessidade de clareza: "Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados..."

Sobre certezas: "O que juro, o que sei, é que tucano tem papo."
Sobre lugares que mudam de nome: "Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu devia de estar sagrado. Lá como quem diz: então alguém havia de renegar o nome de Belém – de Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, como Nossa Senhora e São José? Precisava de se ter mais travação. Senhor sabe: Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele..."
Sobre pobres: "Pobre tem de ter um triste amor à honestidade."

Sobre o amor: "Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."

Sobre o amor a Diadorim: "E digo ao senhor como foi que eu gostava de Diadorim: que foi que, em hora nenhuma, vez nenhuma eu nunca tive vontade de rir dele."

Sobre raiva: "(...) a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente: o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é."

Sobre a alegria de mandar: "Ali naqu'ela horinha – meu senhor – foi que eu lambi idéia de como às vezes devia de ser bom ter grande poder de mandar em todos, fazer a massa do mundo rodar e cumprir os desejos bons da gente."

Idem: "Aonde eu ia, todos achavam natural. Chefe é chefe. Será que eles não sabiam que eu não sabia aonde ia?"

Sobre coisas espantosas: "Ave, já vi tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com soluço..."

sábado, outubro 28, 2006

Raul Pompéia

As Canções Sem Metro
Vibrações



Comme des longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se repondent.
C. Baudelaire




Vibrar, viver. Vibra o abismo etéreo à música das esferas; vibra a convulsão do verme, no segredo subterrâneo dos túmulos. Vive a luz, vive o perfume, vive o som, vive a putrefação. Vivem à semelhança os ânimos.
A harpa do sentimento canta no peito, ora o entusiasmo, um hino, ora o adágio oscilante da cisma. A cada nota, uma cor, tal qual nas vibrações da luz. O conjunto é a sinfonia das paixões. Eleva-se a gradação cromática até à suprema intensidade rutilante; baixa à profunda e escura vibração das elegias.
Sonoridade, colorido: eis o sentimento.
Daí o simbolismo popular das cores.

Verde, Esperança

A impetuosa alegria da terra, à passagem de Flora, a primavera verde, compromisso maternal do outono e da opulência.
Náufragos no mar.
Sem pão, sem rumo. Em roda, o gume afiado do horizonte, a reverberação do sol nas águas e o silêncio solene da calmaria. A vela do barco, flácida, pendente — imagem do abatimento. Ligeira viração depois; denso nevoeiro... quatro dias! sudário de brumas que envolve o barco, elimina o céu. Vão acabar assim, amortalhados na bruma. Um ramo, apenas, sobre as águas, um ramo cor da esperança. Salvos! Adivinha-se o continente salvador através da névoa e o panorama verde das florestas.


Amarelo, Desespero

Ouro e sol; ouro, o desespero da cobiça, sol, o desespero da contemplação: a cor dos ideais perdidos.
Sobre o leito, o cheiro mau das chagas era como uma antecipação da morte. Descamava-se a pele em crostas ásperas sobre o grude do pus. Ela morria, alcançada pelo sorteio inexorável da Peste. À porta, o anjo negro da maldição; longe, a espavorida caridade.

Ali, na parede, havia flores adornando um retrato de moço. Simples lembrança da Páscoa, flores da aleluia, colhidas numa escapada de amantes. Amor não faz quaresma... Cobertas de ouro as árvores... Ela também triunfante: ouro sobre o esplendor adorado do sexo... Agora fitava as flores secas. Junto dela, o filho, pequeno animal sem vontade, sem vida, que lhe chegava aos lábios um copo d’água.
Sobrara-lhe um filho nos desperdícios do passado, para vigiar-lhe a agonia. Ninguém mais, ninguém mais, nem Deus com ela: apenas as flores do desespero e aquele copo d’água de vez em quando, que ela sorvia como uma medicina amarga de lágrimas...


Azul, Ciúme

Céu e oceano, a soledade sem fim. O ciúme é isolamento, queixa sem ecos do coração solitário.

Ao despertar, estava só na triste câmara. Enferma e abandonada! Calcadas aos pés as juras de ontem, como destroços de um ídolo quebrado. Fronteira ao leito, a janela parecia alargar-se mais e mais para mostrar o firmamento. Sob o reflexo azul sonhara Rosita o abandono, eles felizes numa concha de safira, levados à flor do grande lago, docemente, cantando, docemente, se a barcarola os levasse. Morreu, fechando na pálpebra a estampa diurna daquele azul fundo, deserto.


Roxo, Tristeza

Tinta tomada à palheta do ocaso e às flores da morte.

Alegre, ela. Muita luz no espaço; bailava no ar o cântico sereno da manhã; na relva os arbustos orvalhados tinham um pequenino sol em cada folha. Somente as violetas sofriam, pungidas pelo dia.

Outra manhã, tudo mudado. Na atmosfera, um torpor gélido e sombrio. Os extremos da paisagem gastam-se na cerração como as orlas de uma pintura velha: nem sol nem pássaros na relva.

Agora, órfã.

As violetas revivem, as melancólicas, desabrochando em suspiros, sob as lágrimas da chuva.

Vermelho, Guerra

Sangue, cólera, vingança, os hinos marciais, golpes, o incêndio, vermelho o manto dos tiranos e Marte, o astro dos combates.

Da casinha à beira-mar, olhos em febre, a velha mãe argüía a distância. Lá, mergulhara o vapor que lhe roubava o filho para a guerra. A tarde passa e a noite; a velha, imóvel, marmorizada na dor, como uma escultura do Stabat Mater. E vem a aurora, uma aurora brutal de chama e sangue. A mãe do soldado caiu como morta.

Ouvira, das bandas da aurora, um grito de morte e a voz perdida do agonizante era a voz do filho.

Branco, Paz

Arminho imaculado e virginais capelas, o sagrado leito das mães, o rosto calmo dos mortos, os tranqüilos fantasmas.

"Terminada a luta, minha boa Irene. Torno a ver-te enfim e aos queridinhos. Ver-me-ás também. Como se fica velho neste ambiente de pólvora queimada!"
Dizia assim a carta, datada do acampamento. Irene ergueu os olhos para a tarde, os olhos rasos de pranto. Expirava o crepúsculo na ditosa agonia dos patriarcas, lenta e mansa; errava no ocidente a neblina lúcida da última hora, saudade apenas no dia extinto. A estrela plácida das tardes parecia olhar a terra; em frente alava-se a lua e o luar noctâmbulo ia, pelos caminhos, semeando a difusão suavíssima da paz.
Irene abandonou-se ao êxtase contemplativo, gozando o crepúsculo, como se lhe invadisse o sentimento a letargia edênica do anoitecer.

Negro, Morte

O contraste da luz é a noite negra.

Sente-se na epiderme a carícia do calefrio; envolve-nos um clima glacial; estranha brisa penetra-nos, feita de agulhas de gelo. Em vão flameja o sol a pino. Sente-se dentro na altura a noite negra, invernosa, polar; sofre-se o contato da Sombra. Tudo trevas, sinistramente trevas. O dia, resplandecente na alvura dos edifícios, produz o efeito da prata nos catafalcos. Vemos as flores, o prado. Monstros! Reclamam a carne do pé que os pisa; o verme sôfrego espreita-nos através da terra... Rir?! Mas o riso tem a cruel vantagem de acentuar, sob a pele, a caveira...

Há destas escuras noites no espírito.

Rosa, Amor

O sorrir das virgens, e o adorável pudor, e a primeira luz da manhã.

Esta criança pensativa. Acompanha com a vista o revoar dos pombos; escuta o misterioso segredo dos casais pousados. Vive-lhe ainda no semblante a candura da infância e nos formosos cabelos o cálido aroma do berço. Súbito, duas pombas partem. Vão. Longe, são como pontos brancos no azul; o bater das asas imita cintilações: vão, espaço a fora, estrelas enamoradas.
A cismadora criança experimenta a vertigem do azul e a alma escapa, sedenta de amplidão, e voa ao encalço das estrelas.
Há noites de pavor nas almas, há belos dias igualmente e gratas expansões matinais, auroras de rosa como em Homero.
Há também nas almas o incolor diáfano do vidro.
Dinheiro, amor, honraria, sucesso, nada me falta. O programa das ambições tracei, realizei. Tive a meu serviço a inteligência estudiosa do Ocidente e a sensualidade amestrada do Levante. Tive por mim as mulheres como deusas e os homens como cães. Nada me falta e disto padeço. Todos dizem: aspiração! e eu não aspiro. Todos sentem a música do universo e a harmonia colorida dos aspectos. Para mim só, vítima da saciedade! tudo é vazio, escancarado, nulo como um bocejo.
E os dias passam, que vou contando lento, lento torturado pela implacável cor de vidro que me persegue.
Há, enfim, a coloração indistinta dos sentimentos, nas almas deformadas.
Veio de longe, muito longe, mísero! Teve outrora um céu, uma pátria, muitas afeições, a cabana da aldeia. Agora só tem o ódio. O ódio mora-lhe no peito, como um tigre na furna. Tiraram-lhe a pátria, a companheira, votaram-lhe à morte os filhos, as filhas à torpeza; deram-lhe em compensação... Mostrava a face preta, o sangue a correr. Quem são os teus algozes?
— Os homens brancos.
Ela odeia os homens brancos; odeia a torre aguda, ao longe, como um punhal voltado contra os céus: odeia o trem medonho de fogo e ferro, que muge e passa, troando, escândalo do ermo.

domingo, outubro 22, 2006

Dentro

E aquelas palavras, que deveriam soar como uma brisa sutil, tiveram o efeito de um punhal em seu coração. Sentada em seu colo, chorava sentido... Sabendo que aquele era o momento do fim do que viveram, embora fosse o início de algo que ainda não compreendia bem. No último mês chorara muito por eles. Sabia que estavam irremediavelmente juntos, mas sua ausência lhe doía os ossos. A ruptura acontecera justamente por um afastamento súbito dele que fizera com que ela não suportasse continuar.

Mas procurou-o novamente. Saudade, angústia. Algo na garganta ainda para ser colocado na veia daquela relação. Fim... Era o fim e lhe doía. O amor dele lhe doía. Porque era a confirmação de que tudo que viveram fora verdade. A verdade dói. A mentira consola, ampara. Facilita o caminho.... Como seguir sabendo que ficara para trás um amor? Por que não ficaram juntos? Será que o amor que ele jurava era na verdade uma mentira para confortá-la? Perguntas... Há momentos sem respostas para perguntar. Mas era hora de continuar, pois o amor declarado naquele instante colocara um fim naquela história. Era uma declaração de eternidade, de subjetividade do contato. Algo maior os envolvia. Laços que unem mais do que o toque...

“E milagrosamente ela compreendera tudo sem que falassem. Ninguém saberia que um dia tinham se querido tanto que haviam permanecido mudos, sérios, parados. Dentro de cada um deles acumulavam-se conhecimentos nunca devassados por estranhos. Ele fora embora um dia, mas não importava tanto. Ela sabia que entre os dois havia ‘segredos’, que ambos eram irremediavelmente cúmplices. Se fosse embora, se amasse outra mulher, iria embora e amaria outra mulher para partilhar-lhe depois, mesmo que nada lhe contasse”. Clarice Lispector – Perto do Coração Selvagem.

Finalmente... Estavam um no outro... Dentro.

sábado, outubro 21, 2006

Explosão



A palavra explosão, na obra A hora da estrela, de Clarice Lispector,

vem constantemente entre parênteses para indicar "sensações humanamente insuportáveis", "sentimentos dolorosos de incomunicabilidade e solidão" - professor Valfrides de Souza

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